a) O Romance
O Romance se inicia nos meados do século XVIII, substituindo a Epopeia, considerada, na linha da velha tradição aristotélica, uma expressão nobre de arte. Assim, o novo gênero literário passa a representar o papel que antes era destinado ao antigo, objetivando o mesmo alvo: constituir-se como o espelho de um povo, a imagem fiel de uma sociedade.
O Romance se inicia nos meados do século XVIII, substituindo a Epopeia, considerada, na linha da velha tradição aristotélica, uma expressão nobre de arte. Assim, o novo gênero literário passa a representar o papel que antes era destinado ao antigo, objetivando o mesmo alvo: constituir-se como o espelho de um povo, a imagem fiel de uma sociedade.
Servindo à burguesia em ascensão, depois da revolução
social inglesa, na segunda metade do século XVIII, o Romance tornou-se o
porta-voz de suas ambições, desejos, veleidades e, ao mesmo tempo (e
sobretudo), ópio, sedativo ou fuga da materialidade diária.
Entretenimento, ludo, passatempo de uma classe que
inventou o lema “tempo é dinheiro”, o
Romance traduz fielmente o bem-estar e o conforto financeiro de indivíduos que
pagam o trabalho do escritor no pressuposto inabalável de que a função deste
consiste em deleitá-los.
E deleitá-los oferecendo a própria existência
artificial e vazia como espetáculo, mas sem que a reconheçam como sua, pois
reconhecê-la seria sinal de haverem superado os limites de sua própria classe,
o que se tornava absolutamente impraticável. Portanto, sem o saber, gozam o
espetáculo da própria vida como se fora alheia, estimulando deste modo uma
forma literária que funcionava como espelho em que se miravam, incapazes de
perceber a ironia latente na imagem refletida.
O Romance romântico continha uma imagem composta em
duas camadas. Na primeira, oferecia-se à classe burguesa uma imagem tanto
quanto possível otimista, cor-de-rosa, formada sempre do encontro entre duas
personagens para realizar o desígnio maior da gente burguesa: o casamento.
Oferecia-se aos burgueses a imagem do que pretendiam ser, do que sonhavam ser,
e não do que eram na realidade. Na segunda camada, entranhava-se uma involuntária
crítica ao sistema todo, algumas vezes sutil, outras vezes declarada e
violenta.
No século XIX, o Romance passa a dominar em toda
linha, muito embora às vezes confundido com a novela, ou dividindo com ela seu
poder de influência. Cronologicamente, Stendhal é o primeiro grande
representante do Romance europeu oitocentista – O VERMELHO E O NEGRO (1830) e A
CARTUXA DE PARMA (1839) – ao dar-lhe dimensões psicológicas até então
imprevistas, conferindo-lhe características modernas.
Entretanto é Balzac o criador do Romance moderno,
graças à sua “Comédia Humana”,
escrita entre 1829 e 1850, que constitui um amplo painel da sociedade burguesa
do tempo. Por sua concepção romanesca autêntica, tornou-se o mestre dos que
vieram depois (Flaubert, Zola etc), a ponto de dividir a história do Romance em
duas fases: antes-de-Balzac e depois-de-Balzac.
Nos fins do século XIX, a Literatura russa irrompe
com uma série de romancistas de peso, como Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev,
Gogol, entre outros. Tais prosadores, notadamente o primeiro, trouxeram uma
problemática e um tipo de análise psicológica em profundidade até então
desconhecidas. A novidade fascinou toda a Europa e Dostoievski tornou-se mestre
de uma das vertentes do Romance moderno, o da prospecção psicológica.
Marcel Proust opera nova revolução na estrutura do
Romance no início do século XX. Sua obra EM BUSCA DO TEMPO
PERDIDO (1913) leva mais fundo a sondagem psicológica de Dostoievski, graças à
descoberta da memória como faculdade que apreende e fixa o fluxo vital, bem
como do “tempo bergsoniano”, com
duração existente fora dos limites do relógio ou do encadeamento sucessivo dos
fatos.
Instala-se o caos narrativo, com a proposta de uma
harmonia nova, estranha, feita de circunstâncias que a memória involuntária
surpreende e trança ao sabor do subconsciente ou dos imponderáveis eventos
cotidianos.
De Proust nasce a grande revolução operada no Romance
moderno. A partir daí, o Romance ganha horizontes imprevisíveis.
Gide, vindo um pouco depois, alarga as conquistas da
sondagem interior com a descoberta da “disponibilidade
psicológica” que torna as personagens (e, consequentemente, o Romance)
muito mais próximas da verdade vital que se quer apreender. Consiste no
desaparecimento de toda noção de causa e efeito no comportamento da personagem.
Esta age de um modo aqui e agora, e doutro modo mais adiante e em hora
diferente, sempre disponível psicologicamente para o que der e vier.
Uma permanente improvisação conduz o Romance por um
aparente beco-sem-saída. O resultado é uma aproximação cada vez maior com a
vida, ânsia perene do Romance desde o seu nascimento.
Narrando a vida de seu herói durante 24 horas, em
Dublin, tempo suficiente para revelar a massa de angústia e de saber
enciclopédico que desabam continuamente sobre a cabeça do homem contemporâneo,
o ULISSES (1922) de James Joyce, também contribui grandemente para uma nova
metamorfose do Romance.
Procurando abranger a totalidade do mundo consciente
e subconsciente, Joyce introduziu na estrutura do Romance o relativismo em sua
forma extrema, a ponto de anular qualquer noção preconcebida de espaço e tempo.
Joyce transporta o caos do mundo para o Romance, com
uma linguagem rebelde a todas as imposições normativas da gramática e da
lógica; e, entregando-se às livres associações, põe-se a desintegrar a sintaxe
tradicional e a experimentar soluções novas e esdrúxulas, simultaneamente com a
criação de neologismos imprevistos.
Com Aldous Huxley a desintegração do Romance se
acentua. Para o autor de CONTRAPONTO (1928) e ADMIRÁVEL MUNDO NOVO (1932), é
clara uma idéia: não há, a rigor, dramas individuais. Só há problemas
coletivos, feitos da soma dos transes individuais, de crises próprias de todos,
jamais de cada um per si.
A angústia amorosa, financeira, filosófica, cresce
quando um indivíduo encontra outro igualmente mergulhado em drama. A troca de
problemas, ao invés de os diminuir, aumenta-os incomensuravelmente e ambos
indivíduos saem mais carregados. O Romance complica ainda mais e ganha grandeza
e seriedade trágicas, o que vem a ser a Epopeia dos tempos modernos.
De lá pra cá, conta-se uma série de escritores
notáveis, como Thomas Mann, Virginia Wolf, Franz Kafka, William Faulkner, John
Steinbeck, sendo este último um dos que muito influenciaram o movimento neo-realista português.
Em Portugal, o Romance aparece em meados do século
XIX, acompanhando a tardia aceitação do gosto romântico. Garret, Herculano e
outros cultivaram a narrativa histórica ao estilo de Walter Scott. Mas é Camilo
Castelo Branco a principal figura da prosa de ficção romântica. Uma espécie de
Balzac português, Castelo Branco procurou retratar a sociedade de seu tempo em
uma série de narrativas passionais, históricas, de mistério, que certamente
fazem dele o maior polígrafo da língua portuguesa.
Passando por Júlio Diniz, o Romance português
encontra em Eça de Queiroz seu grande representante, dentro do Realismo ao
estilo de Flaubert.
Depois disso, é preciso aguardar o Modernismo para
que o Romance ganhe força novamente.
Graças ao movimento denominado Presença (1927-1940) e
ao Neo-Realismo (1940 – até nossos dias), podemos dizer que o Romance português
vive uma época de esplendor, com uma plêiade de excelentes ficcionistas.
b) A primeira onda
neo-realista: o Cinema.
O primeiro movimento de
Neo-Realismo que o mundo conheceu foi através de uma outra arte – o Cinema –
uma via de comunicação mais poderosa do que a Literatura.
Cesare Zavattini,
Vittorio De Sica, Carlo Rosselini, Lucchino Visconti, em obras como “Roma città
aperta”, “Ladri di biciclette”, “Obsessione” e “La terra trema”, mostraram-nos
a Itália do “pós-guerra” carcomida nas suas bases e denunciaram a
injustiça social ali imperante.
A Itália, que até 1945
não tinha tradição de Romance, viu surgir um grupo numeroso de ficcionistas
importantes. Nos Estados Unidos, a crítica começou a falar de uma “Italian
Vogue”, dando ao movimento o nome de “Neo-Realismo”.
Um dos primeiros novos
escritores italianos conhecido fora da Itália foi o grande repórter Malaparte
(1898-1957), autor de ITALIA BARBARA, panorama de uma Itália violenta e
miserável, de criminosos, mendigos e conspiradores, diferente da Itália
belíssima dos estetas e dos turistas.
O grande modelo que os
neo-realistas italianos descobriram foi Verga, mestre responsável pelo surto de
romance neo-realista produzido no sul da península e na Sicília, regiões onde
as condições sociais forneceram matéria inesgotável para a descoberta da
verdadeira realidade italiana e para a conseqüente denúncia acusadora.
Otto Maria Carpeaux, em
sua “História da Literatura Ocidental” (vol. VII, pág. 3.430), considera John
dos Passos o verdadeiro “pai” do Neo-Realismo italiano e de todo o Neo-Realismo:
“John dos Passos é um
grande escritor que, depois de ter fundamente influenciado a Literatura
universal, sobreviveu a si mesmo. O autor, que já passara por um dos maiores,
senão o maior romancista do século XX, chegando a fascinar Sartre e os neo-realistas
italianos, este autor está hoje literariamente morto. Não existe exemplo
comparável de equívoco coletivo da crítica literária. Mas já tinham errado no
início, quando Dos Passos, como autor do romance de guerra “Three soldiers”,
foi considerado Naturalista; teria sido um rude soldado americano, filho do
povo, perdendo em meio aos horrores das trincheiras e das infâmias da etapa, a
fé na democracia, aderindo ao socialismo.
Não foi propriamente
assim. Dos Passos é artista por natureza, com sensibilidade à flor da pele. As
experiências de guerra feriram-no profundamente. Desesperando do valor das
frases da eloqüência oficial, patriótica, procurou outra fé na Europa
revolucionada. Encontrou o unanimismo de Jules Romains, de ‘Mort de quelqu’um’; e
leu ‘Ulysses’. Percebeu a possibilidade de um romance fora dos moldes
tradicionais. Escreveu ‘Manhattan Transfer’, que talvez seja sua obra
prima.
Mais tarde, em sua
primeira trilogia, ‘U.S.A.’, Dos Passos documentou a história econômica, social e
moral dos Estados Unidos, durante aqueles anos cruciais; novamente uma série de
banqueiros e datilógrafos, generais e gangsters, artistas e politiqueiros. Não
foi possível enquadrar este mundo caótico na arquitetura rigorosa que inspirara
‘Ulysses’. Mas foi possível usar os processos joycianos de montagem: o
que o grande irlandês fez com a linguagem, decompondo-a e recompondo-a, fez Dos
Passos com sua imensa documentação.
Como um fotógrafo,
copiou imagens em cima de imagens. Um panorama completo do mundo americano, mas
um panorama que proclamou como por alto-falante uma mensagem: a desvalorização
de todos os valores pela crise econômica. A fascinação da obra foi
irresistível. Dos Passos podia passar por um novo estilo de Romance. Tinha
mostrado o mundo assim como é: nu”.
Os italianos o
descobriram e assim descobriu-se a verdadeira identidade italiana. O estilo
neo-realista italiano não é, pois, de absoluta originalidade. Existem,
simultaneamente ou mesmo antes, casos paralelos em outras literaturas. Mas é na
Itália que o Neo-Realismo adquiriu sua violenta culminância, através de Pavese,
Moravia, Vittorini e Bernari.
Alberto Moravia, com seu
romance GLI INDIFFERENTI, antecedeu 16 anos à eclosão do Neo-Realismo. A
própria substância da Itália atingida pela crise – o fascismo – oferecia clima
favorável à criação novelística no novo estilo.
Por tudo isto, não podíamos deixar de falar na “Italian Vogue” ao abordar o Romance neo-realista português.
Por tudo isto, não podíamos deixar de falar na “Italian Vogue” ao abordar o Romance neo-realista português.
c) Influências
estrangeiras
Por volta de 1940,
frutifica em Portugal o Neo-Realismo, uma nova diretriz estética que aparece
com toda sua força revolucionária, atingindo principalmente um gênero
literário: o Romance.
Endeusado por alguns críticos, visto com maus olhos por outros, o Neo-Realismo tem provocado polêmicas e debates e sobre ele vários equívocos se têm espalhado.
A descoberta da ficção estadunidense e brasileira da década de 1930, de fisionomia sócio-realista, foi um dos fatores de maior importância no Neo-Realismo português.
Dos escritores dos Estados Unidos, podemos citar os mais influentes: Michael Gold, John Steinbeck, Upton Sinclair, H. G. Carlisle, Erskine Cadwell, Sinclair Lewis, Ernest Hemingway e John dos Passos.
Ao mesmo tempo, os romancistas brasileiros, em especial do Nordeste, como Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Amando Fontes, José Américo de Almeida e Raquel de Queiroz, chamam as consciências para o grave problema sócio-econômico das secas e para a luta de classes e torno da produção do açúcar e do cacau.
As duas correntes americanas se assemelham nas novidades introduzidas: a objetividade, que não pressupõe destruição do lirismo autêntico e realista; a simpatia comovida por tudo quanto determina altos propósitos de reconstrução social; o desejo de fazer literatura sem heróis pré-fabricados, mas sim com os humildes, os injustiçados, os marginais, numa tentativa de estruturação cinematográfica com o romance, em que o escritor participa ativamente do roteiro.
Adolfo Casais Monteiro chama de “realismo-lírico” esta característica do novo romance brasileiro que considera a realidade de um ponto de vista que, permitindo ser cru, brutal e duro, não lhe faz perder nunca o sabor, o frescor, a autenticidade. E afirma, referindo-se a Jorge Amado:
“Não corromper a realidade, não a fazer poética no sentido de idealizada, amputada dos elementos essenciais, para nos aparecer como realidade, e deixar-lhe, contudo, toda a poesia, isto é, todo o perfume do vivido, todo íntimo segredo; não ficar reduzida a uma coisa mesquinha e baça, não trair nenhuma das misérias do homem, não esconder nenhuma infâmia, não ocultar nada do que é feio, e dar-se todavia uma impressão de plenitude – eis o que, em meu entender, sobressai de melhor entre quantas conquistas o romance brasileiro de hoje conta no seu ativo” (Adolfo Casais de Monteiro, O Romance – Teoria e crítica, pág. 201).