II - CONFLUÊNCIAS À NOVA DIRETRIZ ESTÉTICA

a) Presencismo dissidente ou Realismo Psicológico

O movimento europeizante da “Presença”, revista literária fundada em 1927 por um grupo de estudantes – José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca – era já o anúncio do Neo-Realismo que surgiria.
Embora despegado da realidade portuguesa e partidário de uma literatura “artística”, o movimento presencista, com sua irreverência arejadora, pode ser considerado um marco no caminho do Neo-Realismo. O primeiro número da revista saiu em 10 de março de 1927, onde José Régio publicou um artigo, sintetizando o programa de ação da revista:
LITERATURA VIVA - Em arte é vivo tudo que é original. É original tudo que provém da parte virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição de uma obra viva é, pois, ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora, como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos demais (artistas ou não), certa sinonímia nasceu entre o adjetivo “original” e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo, o adjetivo “excêntrico” – estranho, extravagante, bizarro.
Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que o autor pretende ser original, sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas, mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto desses temperamentos terá o encontro do raro e do imprevisto. Afetadas, semelhantes qualidades não passarão de um truque literário.
Eis como tudo se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida e que, por isso mesmo, passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior, pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço.
E é apenas por isso que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mortas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida Antônio Botto; que os sonetos de Camões são maravilhosos e os de Antônio Ferreira massadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino Figueiredo; que há mais força íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato”.
Alguns anos mais tarde, Fernando Namora, um dos grandes vultos do Neo-Realismo português, em seu prefácio de CASA DA MALTA, vem como que ratificar as palavras de José Régio:
“Contudo se ser humano é ser verdadeiro, se a verdade sempre se exprimiu numa linguagem simples, o realismo dos nossos dias poderá chamar a si as palmas da arte humana, arte congregadora, pois foi a simplicidade, antes de mais, que lhe deu um cariz. Colocada do lado oposto do artifício, da arte-regozijo de eleitos, tão direto que roçou pelo documento social, tal simplicidade foi levianamente interpretada como primarismo, inépcia, e não se reparou ainda que o fácil nunca se deu bem como simples.
O artista ou se bate ou se capitula, tem-se escrito amiúde, e, para se bater, precisa que lhe entendamos a fala dessa luta. Para alguns, porém, escrever tem os limites da experiência vivida. Nesses me incluo.
Ir ao encontro do simples – usando da linguagem acessível da simplicidade para os definir – tornou-se um modo do artista se afirmar como indivíduo, pois essa afirmação só começa quando se participa do que os outros aspiram e sofrem”.
Mas são apenas esses pontos de contato. No nº 9 da Presença, de 9 de fevereiro de 1928, José Régio lança o manifesto do seu grupo:
“A finalidade da Arte é apenas produzir-nos esta emoção tão particular, tão misteriosa e, talvez, tão complexa – a emoção estética.
O ideal do Artista nada tem com o do moralista, do patriota, do crente ou do cidadão”.
Aí a grande divergência entre os presencistas e os neo-realistas, que lutarão sobretudo pela literatura “engagée”, pela arte que denuncia a realidade atual, enquanto que os presencistas antepõem o individual ao social, a intuição a qualquer verdade objetiva ou racional, o mistério ao realismo fotográfico.
A técnica do romance presencista, porém, irá deixar vestígios no romance neo-realista, no que diz respeito à estrutura da narrativa, de um modo especial, O BARÃO, de Branquinho da Fonseca, cuja influência se fará notar em Fernando Namora (O HOMEM DISFARÇADO), Cardoso Pires (O ANJO ANCORADO) e Almeida Faria (RUMOR BRANCO).
O último número da revista Presença sai em fevereiro de 1940, mas desde 1934 encontramos as primeiras manifestações anti-presencistas. O jornal “O Diabo”, que começa independente e eclético, aos poucos vai perdendo o seu ecletismo e adquirindo uma diretriz única, evidente a partir de 1938:
– em 31 de dezembro deste ano, Joaquim Namorado escreve um artigo (Do Neo-Realismo  Amando Fontes) onde possivelmente pela primeira vez se usa o rótulo por meio do qual a nova corrente literária pouco depois viria a se tornar conhecida.
– em 26 de agosto de 1939, Alves Redol publica o conto “Lua de pé”; em 4 de outubro de 1939, Seabra Novais trata da “Literatura Populista”;
– e, entre setembro e novembro de 1939, Antônio Ramos de Almeida publica as “Notas para o Neo-Realismo”.
Durante este período, a reação anti-presencista se faz presente através da revista “Sol Nascente”, onde um programa de ação se estampa no primeiro número, “tendo como fim contribuir para o elevamento do nível cultural português, juntando seus esforços a outros nobres esforços que se afirma, Sol Nascente não esquece a frase límpida do nosso Eça: o fim de toda cultura humana consiste em compreender a Humanidade”.
Dois anos mais tarde, o caráter da revista define-se limpidamente:
“Sol Nascente surgiu como um quinzenário cultural de orientação um pouco esfumada e imprecisa, limitando-se nos seus primeiros vinte números quase só à missão passiva de arquivar. Em dado momento, porém, começou a pronunciar-se, dentro da revista, uma certa linha de pensamento, um certo método que, pela simpatia conquistada, depressa conduziu à aceitação de uma doutrina.
A partir de então, a missão da revista tornou-se marcadamente ativa, dinâmica. Sol Nascente passou a ter o seu programa completo e a sua posição intransigente sobre múltiplos problemas. Assim é que reage contra a metafísica e o psicologismo, apoiando se na obra crítica do pensamento cismático – o combate pelo Neo-Realismo como forma necessária de humanização da arte; e defende um humanismo integral, que seja verdadeiramente um humanismo humano”.
A técnica irreverente e arejada do romance da Presença e depois os presencistas dissidentes constituíam o primeiro passo para o novo movimento literário que começava a nascer.


b) Realismo Crítico ou Neo-Naturalismo

Ainda sem o rótulo do Neo-Realismo, alguns escritores portugueses surgem com profundas inovações estéticas em seus romances, onde já aparece uma denúncia individualista. Não é a de classe ainda. Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro são os representantes do Realismo Crítico, que apresenta uma ficção já bastante parecida com a que os neo-realistas pretendem criar.
As personagens dos romances destes escritores têm muito em comum: sofrem as injustiças sociais, são esmagadas por condições adversas, clamam constantemente pelo calor humano. Simples, humildes e desgraçados, sempre os une a infelicidade comum.
O caminho aberto pelos realistas e naturalistas do século XIX, ao denunciar uma sociedade corrompida por um falso relacionamento social, vai ser trilhado com um sentido diferente, o que causou certa perplexidade nos leitores.
Aquela visão negativista do século XIX, herança de Darwin, Taine, Comte etc, vai sendo substituída por uma visão mais otimista quanto ao Homem, embora cada vez mais descrente na Civilização.
O condicionamento biológico desaparece, com o surgimento de teorias novas e isto se reflete claramente nos heróis dos romances.
Podemos notar então as seguintes inovações estéticas a partir do Neo-Naturalismo ou Realismo Crítico:
1) Estrutura psicológica do herói
– O herói deixa de ser amorfo; é alguém que luta, que exerce sua vontade, mas forças exteriores muitas vezes o impedem de agir.
– E deixa também de ser exceção, potencialmente superior a todos que o rodeiam.
2) Temática
– Não vai insistir nos vícios e taras do Naturalismo, incidindo na frustração dos esforços do homem cerceado por fossos sociais e econômicos.
3) Linguagem
– Há um esforço simultâneo para torná-la mais portuguesa, depurando-a dos estrangeirismos.
– A renovação traz consigo esforços nacionalistas.
– Linguagem mais rica nos seus efeitos sugestivos.
– Libertação da contenção vocabular que o Realismo exigia.
– Linguagem mais trabalhada, mais fluente, mais rica.
4) Estrutura narrativa
– Não foi inovada. Repetição exata do que havia sido consagrado como estrutura do Romance tradicional do século XIX.
– O interesse da narrativa se sustenta no enredo, na história.
– O encadeamento dos fatos se apóia numa lógica apriorística, onde o autor explica tudo através de causas e conseqüências, com a aceitação irredutível da lógica dos atos humanos (item estilhaçado pela literatura contemporânea).
      – A caracterização das personagens, a revelação dos sentimentos e a descrição do espaço (ambiente) dependem de rigorosa seleção de elementos de percepção objetiva (o Romantismo já trazia estes traços).


c) Realismo Dialético ou Socialista - Neo-Realistas propriamente ditos

Este romance não pretende ficar na Literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”.
Esta declaração foi feita por Alves Redol, em seu romance GAIBÉUS – publicado em 1940 e considerado como obra introdutora da nova tendência em Portugal – onde o romancista relata o drama anônimo, mas comovente, dos gaibéus, modestos trabalhadores do campo na região do Ribatejo.
Com relativa pobreza doutrinária, diferentemente da Presença, que foi um movimento precedido de um corpo definido de teorias estéticas, o Neo-Realismo instala-se em Portugal a partir de GAIBÉUS.
Antônio José Saraiva, um dos principais críticos do movimento, resume em três os seus aspectos fundamentais:
1) uma visão mais completa e integrada dos homens;
2) a consciência do dinamismo da realidade;
3) a identificação do escritor com as forças transformadoras do mundo.
Assim o Neo-Realismo faz surgir em Portugal a literatura social. Pela primeira vez o escritor volta os olhos para o homem do povo e denuncia uma realidade até então escamoteada.
Muitos escritores se valem, é verdade, de uma ideologia política para substrato de sua concepção da realidade, com o objetivo de violentá-la e subvertê-la, usando a ficção como arma de propaganda e ação.
Outros foram ou são neo-realistas por coincidência, seguindo os ditames da vocação literária pessoal e recebendo a influência do ambiente neo-realista, em especial durante os anos da 2ª Grande Guerra.
O que nos interessa, no entanto, é a obra literária. Os motivos por que o artista é levado a escrever é assunto de discussão permanente.
Há escritores que, pretendendo fazer literatura “engagée”, transformaram suas obras em panfletos.
Outros há, gênios, que mesmo sendo levados por motivos políticos, conseguem verdadeiras obras de arte.
Pode acontecer que surja um dia uma obra de propaganda que seja uma obra eterna e que todos nós a aceitemos e amemos. O gênio é capaz de tudo, basta lembrar “Os persas”, de Ésquilo, ou “Ricardo III”, de Shakespeare, que, de acordo com os historiadores, são obras de inspiração política.
Não podemos exaltar ou condenar os neo-realistas sem examinarmos cada um deles e cada uma de suas obras. Como todo movimento de reação, os novos romancistas também tiveram seus excessos.
Muitos sabem o que não querem ser, mais do que querem ser, tal como os modernistas brasileiros que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922. O importante é que as araras se esperneiam, com disse Mário de Andrade.
         Logo que Alves Redol publica GAIBÉUS, muitos outros escritores foram surgindo, seguindo a nova tendência. Alguns mais ortodoxos (e estes nós sabemos que quase sempre são os piores), outros aceitando apenas parcialmente a nova moda e evoluindo por trilhas próprias.