III - PRINCIPAIS OBRAS E AUTORES

Bem sabemos que para cada escritor, cada obra, há campo inesgotável de pesquisas e estudos aprofundados. Citaremos aqui um roteiro de leitura mínima para uma visão de conjunto do Neo-Realismo e o comentário sobre os autores feito por Massaud Moisés, em “A Literatura Portuguesa” (11ª edição, 1973):

- A SELVA (1930), A LÃ E A NEVE (1947) - Ferreira de Castro
- O MALHADINHAS (1922), A VIA SINUOSA (1918) - Aquilino Ribeiro
- GAIBÉUS (1940), AVIEIROS (1942), BARCA DOS SETE LEMES (1958) - Alves Redol
- CASA NA DUNA (1943), UMA ABELHA NA CHUVA (1953) - Carlos de Oliveira
     - CASA DA MALTA (1945), O TRIGO E O JOIO (1954), O HOMEM DISFARÇADO (1957) - Fernando Namora
- O ANJO ANCORADO (1958), O HÓSPEDE DE JOB (1963), O DELFIM (1968) - Cardoso Pires
- CERROMAIOR (1944), SEARA DE VENTO (1962) - Manuel da Fonseca
- MANHÃ SUBMISSA (1954), APARIÇÃO (1959) - Vergílio Ferreira
- RUMOR BRANCO (1962), A PAIXÃO (1964) - Almeida Faria.

FERREIRA DE CASTROVeio para o Brasil aos 12 anos, empregando-se num seringal, em plena selva amazônica, onde armazenou as vivências para escrever A SELVA, uma de suas obras capitais.
Narrador de recursos fáceis e estilo direto, porque deseja atingir o público mais simples, Ferreira de Castro tem suas obras traduzidas em várias línguas.
Seus escritos fundamentais dividem-se em dois tipos: primeiro, aquele em que fixa observações de emigrantes; segundo, de caráter continental ou europeu, onde analisa dramas semelhantes ao do primeiro tipo.
Entre a primeira e a segunda fase há evidente unidade, que advém de Ferreira de Castro procurar como personagens dos romances os que sofrem injustiças sociais.
Simples, humildes e desgraçados, sempre, quer sejam do Amazonas, do interior de São Paulo, das zonas frias da Serra da Estrela, une-os a mesma infelicidade de serem párias sociais, irmãos apesar de toda diferença temporal ou geográfica.
Romance social, documentário ou reportagem, sua obra contém um testemunho contemporâneo das classes inferiores em luta dentro da moderna organização social.
Daí decorre, inevitavelmente, a fidedignidade do retrato, o realismo que não se detém perante qualquer situação, um pensamento de raiz doutrinariamente preso às idéias socialistas. Estas, que podem estar implícitas nos dois primeiros romances da melhor fase (depois de 1928), surgem mais declaradamente nos posteriores.
O melhor de sua obra está em EMIGRANTES, A SELVA, ETERNIDADE e A LÃ E A NEVE, pelo trágico que alcança comunicar, próprio de vidas cinzentas lançadas contra as oligarquias e a Natureza inclemente.
AQUILINO RIBEIROEncontra-se em uma linhagem de prosadores que, passando por Eça de Queiroz, entre os nacionais, e por Anatole France, entre os estrangeiros, remonta a Camilo Castelo Branco, pelo menos no que toca ao culto da “escritura artística”, perfeita quanto à pureza e à precisão vernaculares.
Sendo antes de tudo um escritor, mais do que ficcionista, pois que lhe faltam os dotes da imaginação de que Camilo era provido, Aquilino dedicou a vida toda ao ofício de escrever como vocação e como realização da sentença buffoniana de que “o estilo é o homem”.
Para atingir seu objetivo, teve que levantar um impressionante vocabulário e uma rica sintaxe e não duvidou de fazer uso de arcaísmos e tipismos regionais de sua província natal, a Beira Alta. Sua primeira marca, portanto, é a pesquisa estilística, a volúpia da forma cinzelada e brilhante, não raro descendo a barroquismos de duvidoso efeito.
Além disso, especialmente nas primeiras obras, Aquilino recebeu alguma influência do Decadentismo, por via do exemplo de Fialho, mas caldeando-a já com sua maneira peculiar que lhe faria a fortuna de escritor voltado para a terra e para as matrizes do idioma.
Despontavam então algumas de suas características fundamentais, que iriam confluir para formar a vertente melhor de sua volumosa produção, aquela em que o romancista estampa uma profunda simpatia pelo homem rústico das Beiras, vivendo rudes dramas de criatura reduzida à condição de animal irracional, paganicamente embrutecido pelo exclusivo contato com a terra áspera e primitiva e com os velhos e gastos preconceitos sociais, firmemente arraigados nos meios rurais.
É o que se observa na maior parte de suas obras de ficção. Neste particular, o seu melhor está na novela O MALHADINHAS, inserta na “Estrada de Santiago”.
ALVES REDOLComo os contemporâneos de sua geração, descobriu uma flagrante semelhança entre o drama dos pobres gaibéus, verdadeiros servos da gleba, e os retirantes nordestinos, escorraçados pela seca e pela fome.
O êxito da sua obra de estréia estimulou-o a desenvolver suas aptidões literárias. Influenciado pela ficção social dos anos 30, que se produzia no Brasil (Graciliano, Jorge Amado e José Lins) e nos Estados Unidos (John Steinbeck, Michael Gold e John dos Passos), toda sua obra romanesca traduz o esforço de documentar, polemicamente, a escravidão do homem à terra e ao senhor dela.
Seu centro de interesse é o drama angustiante do injustiçado social, do campo ou das regiões ribeirinhas, seja ele gaibéu, avieiro, fangueiro ou vinhateiro do Douro, mas sempre vergado a um destino ingrato e sombrio.
Ortodoxamente neo-realista, o prosador não consegue divisar suas personagens sem adesão fraternal ou profunda emoção, de que resulta uma literatura de tese, voltada para os aspectos socioeconômicos, firmada numa mundividência socialista.
A fim de alcançar a denúncia de um estado de coisas requerente de transformações radicais, lança mão de um estilo de reportagem que procura captar os tipismos da localidade em que a fabulação transcorre.
Os pormenores plásticos e o ritmo poético das frases completam a impressão de que Alves Redol compõe, na verdade, poemas em prosa ou sagas apaixonadas, tendo como herói o trabalhador irremissivelmente preso ao fardo adverso.
A partir de A BARCA DOS SETE LEMES há uma evolução rumo a um alargamento de vistas e o escritor vai se tornando menos ortodoxo, aperfeiçoando o estilo que se adequava melhor à narrativa. A morte, porém, não permitiu que ele levasse às última conseqüências as saídas que tais mudanças pareciam implicar.
CARLOS DE OLIVEIRACompartilhando do Neo-Realismo sem esquematismos nem apriorismos deformantes, narra, com notável senso de verdade, histórias em torno de situações observadas pelo olhar exigente e reinventadas pela imaginação, fluindo num tempo que escoa à nossa frente com incrível naturalidade.
O narrador desdenha os nexos formais do tempo, em favor dos vínculos interiores, além de procurar apenas o enquadramento dos fatos capitais, numa parcimônia de episódios e de atritos dramáticos que logo se comunica ao leitor, inclusive graças à verosimilhança psicológica dos retratos e dos conflitos.
A despeito de transparecer que o romancista se fundamenta numa retaguarda ficcional que remonta a Camilo, Eça, Fialho e Graciliano Ramos, é patente sua originalidade, seja como estilo, seja como essência.
À primeira vista, não parece que estruturou sua cosmovisão dentro das linhas neo-realistas, decerto porque escapou sempre às simplificações enganadoras. Dois de seus romances podem erguer-se como definitivas conquistas do movimento: CASA NA DUNA e UMA ABELHA NA CHUVA.
FERNANDO NAMORAEm sua trajetória literária há que considerar três fases:
a primeira, caracterizada pelo realismo psicológico, espécie de fusão entre a influência presencista e a tendência neo-realista, o que se documenta nas obras iniciais e em FOGO NA NOITE ESCURA.
a segunda, iniciada com CASA DA MALTA, em que o realismo psicológico cede lugar a um realismo de tônica predominantemente social.
É aí que Fernando Namora faz a análise dos dramas sociais. Tal propensão, estipulada pelo cânon de arte preconizado pelos neo-realistas, ainda se desenvolvia graças à profissão de médico, que permitia ao escritor conviver com as classes desfavorecidas de vários lugares da província e assim enriquecer-se de uma grande experiência da vida, que transferia quase ao natural para seus romances.
Não tendo outra preocupação que fixar situações dramáticas e trágicas de gente simples e sofredora, Fernando Namora dirigia-se para uma forma atenuada de realismo, muito mais interessado no que vai nas consciências do que no atrito social.
na terceira fase, com O HOMEM DISFARÇADO e DOMINGO À TARDE, o escritor parece voltar ao realismo psicológico, agora sem aderências presencistas, desenvolvido e subtilizado pela experiência adquirida e por uma capacidade maior de penetrar a intimidade mental das personagens.
Ao longo dessa evolução, nota-se que o estilo de Fernando Namora se torna cada vez mais econômico, ajustado ao intuito de insinuar e surpreender para além das aparências.
CARDOSO PIRESEssencialmente ficcionista, sua atenção está fixada mais nas narrativas curtas, aparentemente sem ‘plot’, destituídas de um acontecimento central e que assinalam um convívio sistemático com a ficção estadunidense, sobretudo Hemingway.
Transcorrem em câmera lenta, como se as personagens estivessem imersas num aquário ou entrevistas através de vidros foscos, que lhes abafassem a voz e lhes diluíssem os gestos.
Nem por isso o escritor deixa de ser um realista, um verista, ainda que a seu modo; seu realismo é de quem se volta para o cotidiano, urbano ou campesino, numa atitude que raia pela reportagem, mas referida a uma dimensão transcendente, numa radiografia do real.
Por isso o psicológico e o relacional das situações enfocadas emergem do próprio caráter das personagens, à semelhança daquele surrealismo que, focalizando a realidade duma forma obsessivamente precisa, acaba por torná-la irreal ou supra-real.
Para consegui-lo, o escritor utiliza-se, tanto nos contos como nos romances, de uma franciscana economia de meios, resultante da decepação de toda folhagem supérflua, reduzindo os conflitos a seus elementos fundamentais.
Com estilo ágil e conciso, mas brilhante, Cardoso Pires impregna tudo quanto cria dum espírito de denúncia social, subjacente na ficção e evidente no ensaio e no teatro. É, sem favor, dos maiores contistas portugueses do pós-guerra.
MANUEL DA FONSECAIntegrado desde o início de sua carreira à corrente neo-realista, nem por isso abdicou de sua autonomia e lucidez para acolher mecanicamente os postulados estéticos vigentes.
Sua ficção constitui um hino ao Alentejo, a ponto de os livros de contos e os romances formarem um largo afresco daquela província, a saga de um povo que, padecendo longamente toda sorte de inclemências, aguarda com resignação a hora do despertar e da redenção.
Interessado nos transes psicológicos, sem intuito polêmico à mostra, o afeiçoamento aos temas regionais não se dobra nunca ao pitoresco ou ao folclórico. O objeto da análise é o homem, mas sem pré-concepções ideológicas deformantes e esquemáticas. Seu mundo é o do lirismo, das relações humanas mais íntimas, em que o psicológico e o lírico antecedem o social.
Em suma: realismo lírico ou poético, subterraneamente indignado, expresso numa linguagem despojada, direta, incisiva, plástica, em que a objetividade da prosa se mescla com a subjetividade da poesia.
Comovido e comovedor, o ficcionista anseia focalizar o homem em estado natural, despido de qualquer ranço de civilização ou de idéias feita. E, para narrar-lhe as agonias, escreve contos à maneira tradicional, sem conceder nada aos expedientes estruturais de vanguarda, como se compusesse velhos “rimances” à terra de nascimento e eleição, destinados ao mesmo povo que lhe serve de herói.
VERGÍLIO FEREIRARomancista e ensaísta dos mais vigorosos e genuínos dentre os revelados depois dos anos de 1940, suas primeiras obras de ficção ligavam-se ao Neo-Realismo então recente surgido. Todavia, sua adesão ao movimento já continha a independência estética e doutrinária que, aliada a uma indiscutível originalidade de invenção romanesca e de pensamento condutor, lhe vem caracterizando a trajetória de modo cada vez mais acentuado.
É que desde as obras iniciais se lhe evidenciava a inclinação para os problemas de ordem existencial e filosófica, a degladiar com a outra, de feição neo-realista, talvez mais aceita por circunstância de momento que por qualquer afinidade essencial.
Em VAGÃO J, o afeiçoamento neo-realista alcança o ponto culminante. Entretanto, o acendrado interesse pelo homem, não só como animal gregário e injustiçado, mas como um feixe de conflitos interiores, preludiava a metamorfose que se operaria em MUDANÇA.
A dualidade evidente nas obras anteriores desfaz-se em favor de um dos pólos: o psicologismo, que sonda as camadas profundas da angustiante condição humana, começa a substituir o retrato duma sociedade escravizada a costumes e padrões milenares, estratificada em senhores dum lado e servos do outro.
Decidindo-se, por dentro, pela propensão mais autêntica de seu perfil de homem e de escritor vigilante, daí por diante, Vergílio Ferreira vem perscrutando a problemática existencial com uma acuidade verdadeiramente incomparável nos quadros das literaturas de língua portuguesa.
Com APARIÇÃO, o romancista chegaria à maturidade e ao nível de grandeza que permite situá-lo entre os primeiros, se não o primeiro ficcionista português dos nossos dias. Ao mesmo tempo, assinalava o instante em que o romancista e o ensaísta nele se davam as mãos pela primeira vez.
A seqüência apenas se interrompeu com APELO DA NOITE, que aguardou treze anos para vir a público e que resulta ainda do balanço procedido pelo escritor em seu passado ‘indeciso’.
As obras seguintes e os livros de ensaio manifestam de modo insofismável uma privilegiada organização romanesca e especulativa, debruçada ansiosamente sobre o drama vital de nosso tempo, a diagnosticar-lhe as causas e a intuir-lhe o desenvolvimento, numa espécie de microscopia ao vivo dos problemas morais da atualidade – a condição humana, a morte, as transcendências.
A altitude conseguida em APARIÇÃO mantém-se, ao mesmo tempo em que se opera o desenvolvimento duma pesquisa no campo da técnica romanesca, semelhante à que se verifica no romance moderno de vanguarda.
ALMEIDA FARIAUma das grandes revelações da prosa ficcional portuguesa, com seus romances RUMOR BRANCO e A PAIXÃO, que deixam transparecer o magistério de Vergílio Ferreira, enriquecido por uma extraordinária celebração romanesca, fazendo lembrar um Joyce que escrevesse em Português.
Sua arte transpõe as relações entre a História e a Literatura para o Romance, rompendo as fronteiras do discurso literário. No transcorrer das suas obras, vai questionar o passado, numa tentativa de reinventar a identidade nacional, navegando, como tantos outros, por correntes paralelas ou ramificadas do Neo-Realismo.