Julgo interessante contrapor aqui, para finalizar,
duas opiniões sobre alguns aspectos do Neo-Realismo, a de Adolfo Casais
Monteiro, em “O Romance – Teoria e crítica”, e de Fernando Namora, em seu
prefácio para “Casa da Malta”.
“Um traço muito
significativo marca a literatura romanesca desses escritores que a si próprios
se designaram como neo-realistas, e ele nos dá, se bem me parece, a chave de
seu fracasso: é que, de todos os grupos sociais porque se repartem os
explorados, só um, salvo raras exceções, nos aparece representado nas suas
obras, e é o proletário rural.
Ora, se os
escritores neo-realistas assim restringiram o seu campo de observação, não
seria por aí lhes ter sido mais fácil a ilusão de acharem os esquemas por trás
dos indivíduos e o grupo social nitidamente exemplificado por qualquer de seus
membros? A cidade assustou-os. No fundo, como Júlio Diniz, pensavam que nas
aldeias o homem é mais simples, mais rudimentar a sua psicologia, mais puros os
seus sentimentos. Não o fizeram, de certo, após escolha, raciocinadamente –
longe de mim tal idéia! Mas fizeram-no como se o pensassem: acima das suas
intenções, pesou naquela opção a mesma tendência que fez do regionalismo o tema
preferido de tantos realistas do século XIX.
Ora, a
cidade assustou os neo-realistas; orientados sobretudo por uma tese, mais do
que pelo instinto, pela imaginação, pelo conhecimento do homem, receiam
precisamente da cidade a complexidade sob que se lhes apresentam as relações
humanas e a confusão de planos que não lhes deixa vislumbrar onde acaba um e
onde começa outro.
Ali não lhes
pareceu fácil manter os destinos dos homens na arquitetura rigorosa das leis
sociais, harmonizar ciência e experiência. Era pois fatal o recurso ao
camponês, graças ao qual lhes parecia mais fácil pôr a lei em equação” (Adolfo Casais Monteiro, O Romance, pág. 302 e 303).
“No seu
primeiro estágio, o novo humanismo pôs de lado as personagens burguesas, o
cenário burguês, todo o farto e belo mundo das agruras sentimentais, dos
problemas mundanos da consciência individual, da arte como divertimento, da
arte delicada e irresponsável, numa pressa de reabilitar as camadas sociais até
aí mal prezadas na Literatura.
A guerra
fizera emergir, cruamente, realidades fundamentais até aí escamoteadas: a
pobreza, a servidão, as lavas de um poder corrupto; as massas tomavam a
iniciativa de sua promoção, forçando os muros da indiferença burguesa, com a
qual o artista pactuava; este tinha, enfim, o ensejo de denunciar os
compromissos com as classes favorecidas e, desse modo, o ângulo de focagem dos
problemas, como a sua expressão, haviam de ser outros.
Ora, entre
nós é o homem rústico que representa a panorâmica social mais caracterizável e
mais urgente. Por aí, sensatamente se começou; a partir daí e no momento
oportuno, os escritores neo-realistas alargavam a sua visão, desmentindo que
fossem estreitas e boçais as suas fronteiras, tanto mais que o inventário se
elucida, quando se contrastam o meio citadino e o meio rural” (Fernando Namora, Prefácio de “Casa da Malta”).
“Como sob a
férula duma censura que proíbe aos romancistas porem a nu qualquer situação
social ou individual capaz de mostrar uma sociedade, que não é a melhor das
sociedades possíveis, poderia haver romance neo-realista?” (Adolfo Casais Monteiro, “O Romance”).
“Se houve
lição dos anos pioneiros do Neo-Realismo (da geração que deu à Literatura
Portuguesa do nosso tempo um ímpeto desconhecido), foi a da fraternidade.
Ficamos a
saber por eles quanto o companheirismo é fecundo, quanto o poderemos frutificar
mesmo nos presídios, onde medram os cardos do ressentimento.
Valeria a
pena, não como atitude romântica, mas como odisséia exemplar, contar a história
da maioria dos livros que por essas alturas lograram ser publicados: horas
clandestinas que se faziam sobrar dos dias exaustos, tarefas envenenadas pelo
labéu oposto a todo o lunático escriba, cigarros que se deixavam fumar e
refeições que se deixavam comer para o custeio da edição” (Fernando Namora, Prefácio de Casa da Malta).
“João Pedro
de Andrade afirmava, entre muitas outras coisas dignas de nota, o caráter interessado
do Neo-Realismo, o qual tinha, segundo afirma, ‘a intenção deliberada de usar a literatura como uma
força que agiria no conjunto de forças que transforma as sociedades’. Importante é também ele reconhecer que a
doutrinação neo-realista se realizou em condições que especifica nessa
passagem: ‘E ao pormos em dúvida a pureza dos elementos que intervinham na
revolução neo-realista, fazemo-lo pensando na teorização que a antecedeu,
produzida ou impulsionada por indivíduos que não vieram a afirmar-se como
escritores ou críticos literários. Essa teorização era grandemente apoiada na
divulgação de princípios que, podendo também aplicar-se à Literatura, só por
isso não lhe eram totalmente alheios’.
Eis a
explicação de tantas disparatadas apologias, e não menos disparatadas
condenações, de que pela sua maior parte se teceu a atividade crítica levada a
cabo pelo referido setor, e da impossibilidade de lhe manifestarem simpatia
muitos que reconheciam todavia essa ‘autêntica
necessidade de mudança dos rumos literários’, à qual se refere João Pedro de Andrade. Eis chegado, pelo visto, o
momento de reflexão. Mas não deixa de ser triste que só ao cabo de 25 anos
alguém, que apoiou o movimento, chegue às conclusões desde sempre expressas
pelos espíritos objetivos que, por isso mesmo, tão cegamente foram combatidos,
pelas tropas de choque da pseudo crítica neo realista.
Não há
dúvida de que o Neo-Realismo podia ter trazido essa mudança.
A geração da
Presença, apesar de algumas obras notáveis, não deu ao romance aquele rumo que
lhe vinha faltando desde a morte de Eça de Queiroz.
As algumas
obras notáveis que essa geração produziu são ‘momentos’ da obra de cada autor,
isto é, falta-lhes aquela autonomia que constitui a marca principal da vocação
romanesca.
Quando um
dia se puder estudar sob todos aspectos a geração da Presença, compreender-se-á
que a sua própria ‘honestidade’ lhe fez perder uma certa vitalidade que
precisa de imprudência e imprevidência para se afirmar.
Foi uma
geração excessivamente crítica, a cuja obra de reintegração da nossa cultura
nas grandes correntes européias começa a fazer-se justiça, mas ainda sem se
compreender que isso mesmo ela tinha de o pagar por uma diminuição daquela
força cega que pode produzir os grandes romancistas.
Precisamente,
esta virtude estava até certo ponto presente na geração neo-realista. Creio que
nunca tinham surgido em Portugal tantas promessas de talento romanesco. Mas
essa geração deu um passo atrás relativamente ao avanço que a geração da
Presença fizera dar à nossa cultura literária.
Essa
teorização feita nos moldes apontados por João Pedro de Andrade, isto é, dum
ponto de vista cegamente doutrinário, por indivíduos sem conhecimento das leis
profundas da evolução literária – ingenuamente convencidos de que bastava ‘aplicar’ os
princípios da interpretação marxista da realidade para que surgisse uma nova
Literatura, ou então, indiferente a tudo que não fosse encontrar armas de
propaganda – veio inutilizar essa vitalidade que pretendia explodir, impedindo,
até pelo ridículo elogio de qualquer aborto literário, logo que tivesse o
rótulo de ‘escola’, que esses jovens
escritores pudessem tirar de seu talento os frutos prometidos.
João Pedro
de Andrade conclui todavia com otimismo que, embora o Neo-Realismo tenha
falhado como escola, ‘foi fecundo na
preparação duma visão generalizadora e ampla, que permitisse incluir as
preocupações do homem comum no campo de ação da Literatura, contribuindo a seu
modo – superado o seu dogmatismo inicial – para que nas obras de hoje e de
sempre possa perpassar aquele frêmito humano que não é exclusivo de qualquer
escola’” (Adolfo Casais Monteiro, O Romance,
Balanço do Neo-Realismo, pág. 321 e 322).
“Nos
caminhos do novo realismo, não tão acessíveis como se julga (e essa frívola
convicção foi o cemitério de muitos), nunca cuidei de saber a partir de quando,
de que vivência, de que esclarecimentos sobre o melindroso ofício de escrever,
pelo qual se ocupa um lugar de singular responsabilidade entre os homens, se me
tornou nítida a minha convergência numa corrente literária a que se imprimiu um
rótulo gradualmente abusivo, pois os rótulos não servem para nada e a ninguém e
muito menos quando se colam a uma fase incipiente que, ultrapassada, não
deixará de rebentar os espartilhos que a sufocam.
O Neo-Realismo,
ao emancipar-se de certa monotonia de processos e temas, justificada num dado
momento histórico, ao ousar-se a acontecimentos insuspeitos no primeiro
impulso, afirmando, simultaneamente, os seus recursos, revelou também esse
amadurecimento, num aspecto mais perdurável: o respeito pela personalidade
literária de cada um.
Nunca ele
foi parada de soldados a acertar o passo pelo berro do sargento.
Jamais se
dobrou aos demagogos, coveiros arte que se recusa a ser efêmera.
Não
descrevendo fórmulas nem cenários específicos, nem singularidades estéticas,
sendo antes uma visão coordenadora dos homens, dos fatos da vida, o
Neo-Realismo defendia-se do imobilismo, trazia em si as melhores sementes da
sobrevivência.
Um outro
homem, impaciente e cicatrizado, surgira do pós-guerra; à agudeza dos seus
problemas elementares misturava-se, agora com violentos reflexos no conceito
cultural, na vida quotidiana, essa desordem íntima de quem se sente burlado,
dividido, furioso, procurando em si próprio, coagido pelo desespero, as
soluções de convívio e esclarecimento; um homem desprovido de confiança e
orgulho, a desmoronar-se juntamente com um mundo velho, onde já pouco encontra
que valha a pena salvar; um homem ávido de afeto, numa sociedade que, na
aparência, corrompeu ou dispensou a afeição.
Se uma
literatura enfastiada se apresentaria, sem documentar os desenganos de uma
burguesia exausta e enfastiada, reeditando o jogo especioso das idéias e das
palavras, mais uma vez esfumando os problemas, o Neo-Realismo ampliava o seu
campo de observação, respondendo aos novos apelos, não se furtando a aceitar
das fórmulas literárias o que nelas havia de fonte revitalizadora, enquanto por
outro lado se disciplinava, tornando-se sóbrio onde era plangente, colorido
onde se via aridez” (Fernando
Namora, Prefácio de Casa da Malta, Lisboa, 1955).